Fragmentos

Nino Cais, Conversadeira, 2014

Nino Cais, Conversadeira, 2014

Fragmentos | 2014

O célebre verso de T.S. Eliot, que praticamente encerra o seu poema The Waste Land (1922), evidencia como, em tempos de crise e incertezas, os fragmentos de obras do passado nos lembram que pertencemos a uma linhagem que, sem solução de continuidade, nos liga a outras épocas. É nessa relação direta com um mundo que frequentemente nos parece, se não melhor, pelo menos mais simples, ingênuo e cheio de esperanças, que encontramos, ou procuramos encontrar, a força para seguir adiante. Na conjuntura de um momento histórico extremamente delicado do ponto de vista social e político, a exposição que aqui se apresenta busca refletir sobre a maneira como vários artistas contemporâneos recorrem a fragmentos, provenientes do âmbito do cotidiano, da própria história da arte ou então de outros registros da produção cultural, para construir suas próprias obras. 

A série de gravuras coletivamente intitulada Fiction Film, realizada por Victor Burgin em 1991, brota de uma densa teia de relações e referências, ao ser concebida como um conjunto de stills de um filme imaginário sobre Nadja, personagem central do homónimo livro de André Breton (1928). Se o tom surrealista do livro de Breton é a primeira fonte de inspiração, as imagens foram apropriadas, tratadas e sobrepostas digitalmente, e acabam remetendo ao imaginário hollywoodiano dos filmes de detetive. Por sua vez, citando de maneira quase literal as colagens de artistas ligados ao movimento Dada, como Raoul Hausmann e Hannah utiliza elementos pré-existentes, nesse caso fotos da soprano Maria Callas e de aviões militares norte-americanos, para compor uma imagem enigmática e complexa, na qual parece lícito ver o triunfo da criação artística sobre a destruição da guerra. De maneira mais sublimada, o delicado equilíbrio entre violência e criação artística marca o único trabalho tridimensional em mostra, a Conversadeira (2014) de Nino Cais, em que duas cadeiras são unidas (ou separadas) por facas. Como acontece frequentemente também em suas colagens, Nino instaura assim uma relação insólita, levando-nos a questionar a essência, quase o peso específico do que vemos. Desde seus inícios, o trabalho de Leda Catunda se alimenta do imaginário popular, seja de maneira genérica ou abordando universos específicos como o do esporte, recorrente em suas pinturas dos últimos anos.

Quase a demonstrar como não distingue entre cultura "alta" e "baixa", para o conjunto de gravuras produzidas no ano passado a convite da inglesa Paragon Press, a artista paulistana recorreu a imagens derivadas de fontes tão distintas como desenhos de Carlos Zéfiro e de Debret, por sua vez já estampados em tecidos encontrados na rua 25 de Março. O resultado é uma paisagem fascinantemente surreal, em que os vários elementos se misturam de maneira profundamente "pop", próxima nesse sentido aos trabalhos, também incluídos na exposição, de um artista central na cena inglesa das últimas décadas, Peter Blake, de quem apresentam-se aqui gravuras do célebre conjunto intitulado Alfabeto, em que ícones e símbolos da cultura de massa são exaltados como elementos fundantes dessa mesma cultura. A apropriação constante de imagens é o ponto de partida também do trabalho de Paul Morrison, que ao longo das últimas décadas construiu um arquivo imenso, ao qual atinge para a criação de suas próprias obras. Em Epithelium (2006), por exemplo, a estranha figura que aparece atrás de uma selva intricada foi obtida sobrepondo um autorretrato de Rembrandt a um cavalo retirado de uma xilogravura medieval. Típica do estilo do artista, apesar de ser construída digitalmente a obra também parece inspirar-se, como as de Burgin e Hapaska, nas colagens das vanguardas do século XX, ao buscar e evidenciar, na justaposição de imagens, uma estranha familiaridade. 


A fotografia de um braço imerso num líquido transparente nos remete ao universo dos velhos museus de história natural, onde o visitante encontrava com certa frequência cadáveres de animais ou plantas imersos em jarras cheias de formaldeído, para preservá-los. O que vemos aqui, porém, é o braço do próprio artista, Gavin Turk, nessa época ainda muito jovem, desde sempre interessado nos mecanismos de preservação e consolidação proporcionados por museus e instituições culturais. Para além da poética pessoal do artista, não deixa de ser pertinente, e até irônica, a presença da obra no âmbito de uma exposição que busca evidenciar a recorrência do fragmento na produção contemporânea: a mão do artista, associada desde sempre ao seu estilo, aparece aqui como que separada do corpo, ao mesmo tempo enfatizando e negando a possibilidade de algo ser externo à própria obra. Algo parecido poderia ser dito a respeito da obra de Gillian Wearing incluída na exposição, parte de uma longa série de trabalhos em que a artista abordava desconhecidos na rua, pedindo para que escrevessem algo pessoal numa folha de papel, e depois os fotografava. As histórias íntimas que os transeuntes decidem revelar à artista (e a nós) são parte integrantes deles: apesar de etéreos e invisíveis, os afetos, as memórias e as emoções nos constituem de maneira tão essencial e central como um braço ou um rosto. O que poderia parecer apenas acessório, até casual, isto é, um "fragmento", revela aos poucos ser o que mais intimamente faz de nós o que somos, como demonstram também as gravuras da série Venice, de Elizabeth Magill.

Aqui, como é habitual no trabalho da artista, tudo se mistura e se funde até ficar impossível saber o que é de autoria dela e o que é apropriado e reciclado de outras fontes. O resultado é uma Veneza imaginária, e que contudo nos parece, em alguns momentos, até mais real que a original, exatamente porque surge da sobreposição de imagens, lendas .e histórias das quais, em algum momento, já ouvimos falar. 

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03 de outubro a 28 de novembro de 2014